Meia-entrada no Brasil = metade do dobro + 20%

Tal qual os blockbusters americanos de enredo fixo – agente secreto + ameaça terrorista + garantia da paz mundial -, a intervenção pública desastrada no exercício das atividades econômicas tem também suas frequentes. Sobra boa intenção nas ações estatais. Porém, agindo de modo voluntarista, Executivo, Legislativo e Judiciário condicionam e restringem serviços e preços sem avaliarem quais os reais impactos de suas decisões.

Por vezes, criam vantagens para categorias e grupos específicos, levando ao aumento de seu custo para clientes e para a sociedade como um todo; no limite, levam à própria descontinuidade da atividade.

Fatidicamente essa dinâmica é comum. Exemplos são facilmente recolhidos, como o congelamento de preços do açúcar e do álcool, de bilhetes aéreos e o atual tabelamento de fretes para caminhoneiros, dentre tantos outros que legaram aos dias de hoje falências e contas bilionárias.

O preço dos ingressos é emblemático no Brasil. Ainda que muitas causas sejam apresentadas para explicar o porquê de o Brasil ter um dos ingressos mais caros do mundo – agressividade lucrativa dos produtores culturais e baixa demanda por atividades culturais, por exemplo – a explicação está no modelo de meia-entrada que se construiu nos Municípios, Estados, DF e União.

Nas décadas de 1980-90, Estados e Municípios editaram leis de meia-entrada para estudantes com a finalidade nobre de aumentar o consumo de bens culturais para educar uma geração com formação mais completa que as anteriores, sem política de acesso à cultura. Sem muita reflexão sobre as consequências econômicas, mas imbuídos de notável espírito público sempre bem quisto nas urnas, a partir do final da década de 1990 o benefício da meia-entrada foi expandido a outras categorias: jovens menores de 15 ou de 21 anos; doadores de sangue; professores da rede pública e particular de ensino; aposentados e pensionistas do INSS etc. Obesos com IMC superior a 30kg/m2 tiveram direito à meia-entrada nas Olimpíadas e Paralimpíadas do Rio de Janeiro.

No calor dos protestos iniciados em junho de 2013, foram editados o Estatuto da Juventude (Lei n.º 12.852/2013) e a Lei de Meia-Entrada (Lei n.º 12.933/2013), que reconheceram o direito à a meia-entrada a estudantes e jovens de até 29 anos pertencentes a famílias de baixa renda. A Lei da Meia-Entrada também estendeu o benefício a pessoas portadoras de deficiência e idosos, que já dispunham do direito expresso no Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2003).

Em comum, as leis de meia-entrada no Brasil têm o voluntarismo e o sustento com o chapéu alheio. Também a maioria delas se vale da chancela do Judiciário, que tem sistematicamente declarado a constitucionalidade da política de meia-entrada. O que se evidenciou na prática foi o repasse dos custos da regulação para os consumidores, então embutidos no preço dos ingressos. A grande contradição da política da meia entrada está no seu efeito excludente ao tornar o preço do ingresso mais caro: exatamente o dobro.

O resultado prático é que a meia-entrada passou a custar a metade do dobro. Aos pagantes de entrada inteira, agora precificada em dobro, apenas a falsificação de carteiras estudantis e os pêsames socorrem.

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A mais nova cena na trama veio ao palco com a recente decisão do STJ entendendo pela ilegalidade da cobrança de taxa de conveniência para a compra de ingressos pela internet. Para o Tribunal, a taxa seria ilegal porque “transfere aos consumidores parcela considerável do risco do empreendimento, pois os serviços a ela relacionados, remunerados pela ‘taxa de conveniência’, deixam de ser arcados pelos próprios fornecedores”. A decisão padece de equívocos tanto em seus fundamentos, quanto em suas consequências.

A oferta de ingressos via internet é, claramente, uma alternativa à compra física, posta à disposição do consumidor. Cabe a ele o juízo de se dirigir ao local de venda off line, com os custos inerentes à perda de tempo e ao deslocamento, ou comprar via internet, mediante o pagamento de uma remuneração por essa facilidade. Ocorra a venda diretamente pela empresa organizadora do espetáculo, ou por terceiro, haverá custos pela venda à distância em todo caso. Seja ele visível ou não. A terceirização da venda para empresa especializada neste serviço é mera decisão empresarial da organizadora do evento de como exercer suas atividades.

O que o sistema jurídico pode fazer de melhor aos consumidores é lhes garantir opções de escolha. Interditar uma das formas de venda de ingressos pela internet, recriminando sua terceirização, vai na contramão disso. Seria o mesmo que carimbar como ilegais inúmeros outros serviços, de inegável utilidade ao consumidor, como os de intermediação de venda de passagens aéreas (Decolar, Submarino e Kayak, por exemplo), de aluguel de acomodações em hotéis (booking,hotel urbano etc.), e até mesmo os mecanismos tecnológicos de economia compartilhada, como uber e airbnb, que ligam compradores e vendedores. Ou nenhum deles traz vantagens ao consumidor, e seria melhor que cada um dos ofertantes tivesse apenas uma solução própria de venda?

As alternativas não devem ser excludentes, falseando a concorrência e a liberdade de preços. Nos casos de abuso, nada melhor do que acionar repressivamente o sistema de defesa da concorrência, como, aliás, aconteceu em 2018, na ocasião da celebração de um Termo de Compromisso de Cessação entre o CADE e as agências de viagem on line (Booking, Decolar e Expedia). No acordo, elas se comprometeram a não mais utilizar cláusula de paridade abusiva, pela qual as redes hoteleiras faziam oferta de preço, disponibilidade de quartos e condições mais vantajosa ao consumidor que utilizasse suas páginas de internet.

Por outro lado, há quem, como Samy Dana, tenha festejado a decisão porque ela supostamente favoreceria a desintermediarização ao afastar um custo inconveniente, aderindo a uma tendência mundial. Não discordamos dos potenciais benefícios de desintermediarizar. Mas isso também não quer dizer que os serviços e as taxas de conveniência sejam um custo inconveniente. Retirar essa alternativa do campo de decisão do consumidor é que é o verdadeiro inconveniente.

O caso da meia-entrada já permite evidenciar um cenário trágico, em que os ingressos passarão a ser vendidos com a taxa de conveniência ocultamente embutida, seja na via física ou na via on line. O que a decisão do STJ parece não perceber é que a proibição de cobrança de uma taxa de conveniência aparente não significará que o custo desse serviço de intermediação passará a ser do fornecedor e deixará os ingressos mais baratos. Tanto ao contrário: + 20%.

A desintermediarização deve ser fruto da liberdade empresarial, e não da intervenção pública na esfera privada. Aqui vale a menção ao anteprojeto de Lei Nacional de Liberdade Econômica que visa justamente a coibir excessos de ordenação que limitem indevidamente a livre iniciativa, valor constitucionalmente tutelado. A intervenção estatal deve ser mínima e se embasar em evidências (estudos, análises, estimativas de impacto etc.) – tudo o que não se verificou até agora.

Dentre os exemplos de excesso de ordenação – voluntarista e errática –, a mais nova é a dos ingressos. Venham, venham todos! Não percam! Promoção: meia-entrada agora é a metade do dobro + 20%!