Charlie Hebdo: a indigesta capa da Copa do Mundo Feminina

Na edição da última quarta-feira, dia 12 de junho, o hebdomadário francês Charlie Hebdo trouxe em sua capa uma charge polêmica sobre a Copa do Mundo de Futebol Feminino, realizada este mês na França: a capa consiste na ilustração de uma vagina com uma bola de futebol na região do clitóris, acompanhada do texto “Coupe du monde féminine: on va en bouffer pendant un mois“, que pode ser traduzido como “Copa do Mundo Feminina: vamos comê-las por um mês“.

Como era de se esperar, a ilustração em referência gerou reações diversas entre os leitores, sendo considerada por muitos como misógina, machista, grosseira e, até mesmo, um reforço à cultura do estupro. Todavia, há também quem defenda a liberdade de expressão da publicação, que é conhecida por ser altamente polêmica e constantemente desafiar os limites da ética, testando sempre que possível a ideia do “é proibido proibir”.

Afinal, trata-se de um jornal satírico, que usa essa modalidade literária para criticar o estado de coisas. Nada mais legítimo, inobstante não imune ao abuso de expressão.

Em um passado recente, como consequência ilegitimamente repugnante de suas publicações, o Charlie Hebdo foi vítima de retaliações violentas, tendo o episódio mais grave ocorrido em janeiro de 2015, quando terroristas fundamentalistas promoveram um ataque à sua sede em Paris, resultando na morte de doze pessoas, além de deixar outras feridas. Na semana seguinte ao massacre, o Profeta Maomé em charge carregava uma placa em que se lia “tout est pardonné”, ou “tudo está perdoado”.

A respeito da recente polêmica, Charlie Hebdo alega que o objetivo de seu editorial foi criticar a modalidade feminina do esporte, assim como costuma fazer com a masculina. Entretanto, por fazê-lo de forma muito infeliz, gerou repercussão midiática negativa e o clamor de parcela da sociedade por respostas que envolvem até mesmo a possibilidade de censura desse tipo de conteúdo, algo temerário e vedado.

Charlie Hebdo tem por essência provocar, mas, neste caso, a coisa passou dos limites.

A imagem, em si, poderia ser considerada albergada pela liberdade de expressão e de criação artística, além de imprensa. Ainda que possivelmente de mau gosto, ela por si somente não autorizaria nada além de críticas. O texto, contudo, aliado ao contexto, foi abusivo. Não se nega o papel da mulher na sociedade de hoje e a luta que, diuturnamente, empenham tais para conseguirem ocupar lugares tradicionalmente masculinos.

O mundo discute a presença de mulheres na alta administração de empresas, em governos, na academia e, como corolário, questões relacionadas a feminicídio, violência sexual, estupro. Nesse caldeirão, é, no mínimo, imprudente, para não dizer vulgar, o conjunto da obra.

Do ponto de vista teórico, este artigo adota a doutrina de Owen Fiss no que tange ao que o professor denomina o efeito silenciador do discurso. Com efeito, quando a maioria barulhenta se manifesta, a minoria, ainda que articulada, não tem sua manifestação percebida: é precisamente o caso de discursos masculinos versus femininos. É, sim, o caso da última edição de Charlie Hebdo: por mais sarcástica que se proclame, alia-se ao discurso da pseudosupremacia masculina, silenciando, de conseguinte, as defesas de posição igualitária das mulheres.

Em que pese o objetivo ácido supramencionado, é de se ressaltar que a jogadora da seleção brasileira feminina de futebol, Marta Silva, já conquistou os títulos de maior artilheira da história da Seleção Brasileira, incluídas as seleções masculina e feminina e, também, foi seis vezes considerada pela FIFA a melhor jogadora de futebol feminino do mundo.

Contudo, a realidade feminina é, mesmo, diferente da masculina no futebol. Recentemente, as Dibradoras publicaram uma reportagem com crítica às capas de revistas sobre futebol feminino nos anos 19901 – muito na linha da capa da semana passada do Charlie Hebdo. As dificuldades que enfrentam essas meninas em um esporte tradicionalmente masculino são objeto de outra reportagem, todas a pretexto da Copa do Mundo – na África do Sul, em que um grupo já foi condenado por estupro coletivo de uma jogadora lésbica em 20092, o crescimento do futebol feminino está obstado por conta do machismo exacerbado3. Não, a vida das jogadoras não é fácil, e o sarcasmo do Charlie Hebdo em sua última edição não as ajudou.

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Diante desse evento, cria-se nova oportunidade para discussão dos limites da liberdade de expressão, direito que ainda custa tão caro para a sociedade e é constantemente desafiado. Embora infeliz, Charlie Hebdo tem a seu favor o uso do sarcasmo, gênero literário e, como tal, protegido. Em 2018, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451/DF, que trata da suspensão de dispositivos da Lei Eleitoral sobre o humor, o STF entendeu que “o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias” e, “mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional”, devendo gozar da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa em seu art. 220, §1º.

Sobre a utilização do humor como forma de manifestação de pensamento, o STJ também já se posicionou, no Recurso Especial 736.015, no sentido de que “à crítica artística não se destina o exercício da atividade jurisdicional”, não cabendo ao Tribunal a avaliação sobre o gosto ou a inteligência do humor praticado, sendo este reconhecido como uma ferramenta legítima de crítica social.

Isso porque as liberdades de expressão e de imprensa são, mesmo que se use sua teoria instrumental, garantias constitutivas da democracia, diretamente relacionadas ao livre acesso à informação e aos meios de comunicação, possuindo papel de relevo para a formação da consciência, o pluralismo de ideias, desenvolvimento do pensamento crítico em relação à vida coletiva e o exercício da cidadania.

Obviamente, a liberdade de expressão não é um cheque em branco.

Se a palavra dita (como a flecha lançada e a oportunidade perdida) não volta, é preciso cuidado com o que se manifesta. Tanto assim que a própria Constituição apontou os remédios contra o abuso da expressão – identificação da autoria, resposta e indenização.

A censura é repudiada, sendo expressamente banida de nosso sistema jurídico. Nesse sentido, Charlie Hebdo jamais poderia, por exemplo, ser recolhido das bancas ou extirpado da internet, mas poderia sofrer pedido de resposta e indenização por quem se sentisse prejudicado. Não há hipótese em que a frase “Copa do Mundo Feminina: vamos comê-las por um mês” seja interpretada como uma graça, uma crítica, uma sátira.

Trata-se de um dos mais vulgares modos de coisificar a mulher. Charlie Hebdo: desta vez, difícil te defender, mesmo para quem luta pela liberdade de manifestação do pensamento.

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NATÁLIA BASTOS DE SÁ RODRIGUES – advogada, é aluna da Pós em Direito Corporativo do Ibmec, e é pesquisadora voluntária do WebLab Ibmec.
TATIANA ALVES DA SILVA FONTES – advogada, é aluna do LL.M. no Ibmec, e é pesquisadora voluntária do WebLab Ibmec.
MARCO ANTONIO DA COSTA SABINO – professor do Ibmec, Coordenador do WebLab Ibmec e Sócio da área de Mídia e Internet de Mannrich e Vasconcelos Advogados.