Tuíte de Carlos Bolsonaro: a democracia agora é empecilho? A quê?

No livro “Desenvolvimento como liberdade”, o economista indiano Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998 por sua contribuição às teorias da escolha e do bem-estar social, propõe uma relação entre a insegurança econômica de certos países com a ausência de direitos e liberdades democráticas.

A lógica é que o funcionamento da democracia e dos direitos políticos tende a impedir a ocorrência de fomes coletivas e outros desastres econômicos, enquanto, em governos autoritários, não existem estímulos para tomar “providências preventivas oportunas”. Os governos democráticos, escreve o professor de Harvard (EUA) e um dos idealizadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), precisam vencer eleições e enfrentar a crítica pública, dois pilares que servem como “fortes incentivos para que tomem medidas preventivas contra aqueles males”.

Na obra, publicada em 1999, ele mostra que nenhuma fome coletiva ocorreu, em toda a história, em uma democracia efetiva — seja ela economicamente rica, como a Europa ocidental contemporânea ou a América do Norte, seja relativamente pobre, como a Índia pós-independência.

Sen afirma, porém, que as vantagens do pluralismo democrático têm um alcance ainda maior e não é preciso justificar as liberdade política e as liberdades civis com base apenas em seus efeitos sobre a economia. “Mesmo quando não falta segurança econômica adequada a pessoas sem liberdades políticas ou direitos civis, elas são privadas de liberdades importantes para conduzir suas vidas, sendo-lhes negada a oportunidade de participar de decisões cruciais concernentes a assuntos públicos. Essas privações restringem a vida social e a vida política, e devem ser consideradas repressivas mesmo sem acarretar outros males (como desastres econômicos)”, escreve o autor.

Para ele, as liberdades políticas e civis são elementos constitutivos da liberdade humana e sua negação é, em si, uma deficiência.

Vinte anos após a publicação do clássico da economia contemporânea, essa negação da democracia hoje se confunde e se disfarça de negação política. Aí reside o perigo.

O tuíte, publicado na noite de segunda-feira, 09/09, pelo vereador do Rio, Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, é o rompimento aberto desse disfarce. Em seu perfil, ele escreveu com todas as letras que “por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”. E completou: “Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!”.

Como escreveu a economista Laura Carvalho, bons eram os tempos em que ninguém entendia os tuites do filho do presidente. Miriam Leitão, também no Twitter, lembrou que no mesmo dia o filho caçula de Bolsonaro foi visitar o pai ostentando uma arma na cintura.

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A mensagem é pornográfica de tão clara. Afinal, qual é “a transformação que o Brasil quer”?

Um traço do populismo mais vulgar é a substituição da política como exercício de escuta por uma certa autodenominação: “o povo sou eu”. É o primeiro passo para fazer o que se quer, inclusive com as leis, sob a pretensão de executar apenas a vontade popular – que, óbvio dizer, não é una nem é estanque.

No livro “Os inimigos íntimos da democracia”, o crítico e historiador franco-búlgaro Tzvetan Todorov escreve que o regime democrático não se define por um traço único, mas por um conjunto de características que se combina para formar um arranjo complexo, em cujo seio elas se limitam e se equilibram mutuamente. Se esse equilíbrio for rompido, o sinal de alarme deve ser desencadeado, defende o autor.

Por aqui, as demissões de todas as vozes dissonantes, o dirigismo da produção cultural, a perseguição a professores e pesquisadores que se negam a desenhar um mundo cor-de-rosa, a extinção ou manipulação de conselhos populares em instituições públicas já deveriam fazer qualquer alarme berrar.

Segue Todorov: “O povo, numa democracia, não corresponde a uma substancia ‘natural’. Não só quantitativa, mas também qualitativamente, ele é diferente da família, do clã ou da tribo – nos quais o que tem primazia é o vínculo de parentesco”. Fica a fica para quem confunde embaixadas com a edícula no fundo da própria casa.

Para o autor, o individuo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos. A palavra-chave disso tudo é pluralismo, e a vontade do povo, para não sofrer os efeitos de uma “emoção passageira ou de uma manipulação hábil da opinião pública”, deve manter-se “conforme aos grandes princípios definidos após uma reflexão madura inscritos na Constituição do país”. É um exercício de múltiplas camadas.

Por ignorância ou má fé, são esses pilares que o filho do presidente coloca à prova enquanto seu pai se recupera de uma cirurgia. O tuíte coloca a própria democracia como “empecilho” para um tal “desejo de transformação” – assim como o meio ambiente é comumente, e erroneamente, associado a empecilho para o “progresso”, as leis, para o desenvolvimento econômico, a proteção à infância, à ordem pela educação, etc.

Trata-se de um senso comum, facilmente desmontável pela história recente, como mostra Amartya Sen: onde há liberdade, há desenvolvimento (não só econômico) e respeito aos indivíduos.

Democracia não é empecilho a vontade alguma, apenas aos delírios autoritários de quem se pretende falar em nome do país para emplacar o próprio desejo em “nome do povo”. Isso não deveria nem estar perto de ser negociável. Vai ver isso explica o incômodo do 02 com o sistema que elegeu presidente o seu próprio pai.