‘Delação do fim do mundo’ explodiu estoque de inquéritos da Lava Jato no STF

A “delação do fim do mundo”, como ficou conhecido o acordo de colaboração premiada fechado pelos 77 funcionários e executivos da Odebrecht, consolidou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) na Lava Jato.

Dados coletados pelo time de dados do portal Tocantins Agora indicam que dos mais de 190 inquéritos protocolados na Corte, a maioria passou a tramitar depois que a delação com a Odebrecht foi fechada. O gráfico indica no tempo quantas ações estavam em estoque, isto é, o número de inquéritos abertos subtraído o número de inquéritos arquivados.

A Lava Jato antes de 2015 basicamente se resumia a ações de 1ª e 2ª instância. Naquele momento, o foco das operações recaía ainda sobre doleiros. Conforme a investigação avançou sobre empreiteiras e políticos, o STF, como tribunal penal para autoridades com prerrogativa de foro, passou a ser acionado.

Em março de 2015, a delação de Alberto Youssef causou o primeiro aumento de inquéritos relacionados à políticos. Já o crescimento em 2017 indica o acordo com a Odebrecht.

Embora o número de inquéritos tenha crescido após as delações, a maioria ainda se encontra sem um resultado final. Considerando todos, o tempo mediano de permanência na Corte é de dois anos. O inquérito que tem o maior tempo é o de número 3515, que tem como investigado o deputado federal Arthur Lira (PP-AL) e tramita em apenso ao de número 3996. Apesar de tramitar em conjunto com uma investigação da Lava Jato, o inquérito é anterior à própria operação: são cerca de 6 anos sem um resultado final.

Como mostra o seguinte gráfico, a maior parte dos inquéritos que não prosperam tendem a ser arquivados nos dois primeiros anos. A razão mais comum é o arquivamento por falta de provas, o que tem gerado críticas de terem sido baseados em delações de “ouvi dizer”, aquelas que não apresentam provas para posterior comprovação.

O juiz americano Stephen Trott, cujo artigo “O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial” foi traduzido e citado pelo ex-juiz Sergio Moro em sentenças da Lava Jato, já afirmou que investigadores devem assumir de antemão que criminosos são desonestos e podem implicar outras pessoas falsamente com o objetivo de se safar da cadeia.

Segundo ele, o depoimento de um delator deve ser apenas o ponto de partida dos investigadores, que devem buscar provas materiais ou testemunhas robustas.

De todos os inquéritos, foram oferecidas denúncias apenas em 33. Geralmente a denúncia leva pouco tempo para ser oferecida. O tempo mediano para oferecimento é de 1 ano e 2 meses. Há casos, porém, de extrapolação. O inquérito de número 3515, de Arthur Lira, levou mais de 6 anos para que finalmente fosse oferecida denúncia.

O tempo de tramitação dos inquéritos é independente do relator. Com exceção de dois casos outliers que estão sendo relatados pelo ministro Marco Aurélio, a maioria está no padrão de tempo para decisão.

Arquivamentos à revelia do MPF

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Dos 83 inquéritos abertos em abril de 2017 com base nas colaborações dos delatores da Odebrecht, 21 foram arquivados – sendo que um chegou a ser encerrado e foi reabilitado pelo próprio STF. Em 13 desses casos, os investigadores não encontraram provas que corroborassem as delações.

Um dos casos que acabou arquivado pelo STF foi o do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que foi alvo da delação premiada de Alexandrino Alencar, ex-executivo da Odebrecht. Na colaboração, ele contou que se aproximou de Onyx e ressaltando seu desempenho na Câmara, afirmou que a empresa gostaria de tê-lo como um futuro parceiro, motivo pelo qual fez um repasse não contabilizado de R$ 175 mil para a campanha de 2006. O valor teria sido registrado no sistema Drousys, que era utilizado pelo setor de propinas da Odebrecht.

As apurações do caso Onyx se estenderam por mais de um ano, quando em 24 de maio de 2018, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito no STF por falta de provas.

A chefe do MPF apontou falhas, inclusive, do colaborador. “As diligências realizadas não foram suficientes para elucidar a materialidade do suposto crime, uma vez que o colaborador Alexandrino Salles, não obstante afirmar a doação eleitoral não contabilizada ao Deputado Onyx Lorenzoni, na campanha de 2006, afirmou que não operacionalizou a entrega do valor, nem sabe declinar quem o teria feito, a forma, o local e a data da suposta doação”, escreveu.  E completou: “Dentro destas premissas, não há prova, por ora, que tenha havido declaração falsa para fins eleitorais e se esgotaram os meios destinados a elucidar os fatos”.

Em setembro do ano passado, a PGR também requereu, por ausência de indícios mínimos de materialidade e autoria de suposto crime, o fim de inquérito contra o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força (SDD–SP).

A investigação começou a partir da delação de Alexandrino e de Carlos Paschoal, outro colaborador da Odebrecht. Os dois apontaram uma doação de R$ 200 mil, fracionada em quatro parcelas de R$ 50 mil. O sistema de propina da Odebrecht apontou o registro dos repasses entre 22 de julho de 2010 e 12 de outubro de 2010 ao codinome Boa Vista, atribuído ao parlamentar.

“Além do colaborador Alexandrino Alencar não ter condições de identificar a pessoa responsável pelo recebimento da vantagem indevida, não foi possível arrecadar qualquer dado concreto que indique onde e como ocorreu o repasse ilícito. Não há como ter um juízo de probabilidade do pagamento exclusivamente a partir dos registros nos sistemas paralelos da empresa e declarações dos colaboradores”, afirmou a PGR.

A delação da Odebrecht provocou uma situação não muito usual no Supremo, muito criticado devido à morosidade para se chegar a uma conclusão nas investigações contra políticos. Na esteira da restrição do foro privilegiado – que deixou na Corte apenas casos de supostos crimes relacionados ao mandato e em função do cargo –, ministros decidiram reagir e adotaram uma postura mais rígida na condução desses processos. Alguns integrantes da Corte passaram a encerrar, à revelia do Ministério Público Federal, os inquéritos. O movimento teve aval de Dias Toffoli, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.

Para embasar este posicionamento, os ministros afirmaram que agentes públicos não podem suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação, de modo que a apuração deve observar prazo razoável para sua conclusão.

No caso do então senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), apontado por colaboradores da Odebecht como beneficiário de uma doação via caixa 2 de R$ 400 mil para a campanha ao Senado, em 2010, a PGR chegou a defender o envio do caso para a primeira instância.

“No caso sob exame, encerrado o derradeiro prazo para a conclusão das investigações, o Ministério Público, ciente de que deveria apresentar manifestação conclusiva, limitou-se a requerer a remessa dos autos ao Juízo que considera competente. Isso significa dizer, como se disse, que entende não haver nos autos elementos suficientes oferecimento da denúncia, sendo o caso, portanto, de arquivamento do inquérito”, afirmou Barroso.

Segundo o ministro, “Não é, portanto, razoável que, tendo se encerrado o prazo para a conclusão das investigações, sejam agora os autos baixados para a nova apreciação dos fatos, o que obrigaria o investigado suportar, indefinidamente, o ônus de figurar como objeto de investigação, impondo-se, assim, o arquivamento dos autos”, completou.

O mesmo desfecho teve o caso do senador Eduardo Braga que foi arquivado por determinação de Alexandre de Moraes. De acordo com a PGR, uma planilha apontava valor de R$ 1 milhão para que o político favorecer o consórcio da Camargo Corrêa.

“Após 15 (quinze) meses de investigação e o encerramento das diligências requeridas, não há nenhum indício de fato típico praticado pelos investigados (quis) ou qualquer indicação dos meios que os mesmos teriam empregado (quibus auxiliis) em relação às condutas objeto de investigação, ou ainda, o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando) ou qualquer outra informação relevante que justifique a manutenção dessa situação de injusto constrangimento pela permanência do inquérito sem novas diligências razoáveis apontadas pelo titular da ação penal”.

A decisão provocou reações do Ministério Público. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu que “não pode o magistrado, por exemplo, adentrar no “mérito” da investigação, avaliando se as diligências requeridas pelo Ministério Público são eficazes ou não, viáveis ou não. Repita-se: no espaço de formação da opinio delicti, deve o Ministério Público atuar de modo exclusivo. Ao Poder Judiciário cabe, apenas, obstar constrangimentos ilegais evidentes”. A PGR ainda recorre de encerramentos como no caso do tucano Bruno Araújo, ex-deputado federal e ex-ministro das Cidades do governo Temer.