Elos e transações de Flávio que podem arrastar o Planalto para o epicentro da crise

Em seu livro “Crime de Lavagem de Dinheiro”, lançado em 2010, o ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro, dá uma verdadeira aula sobre como encontrar indícios de ocultação de patrimônio obtido de forma ilícita e lavagem de dinheiro. O expediente mais comum, segundo ele, é fragmentar os valores recebidos para que as entradas de dinheiro passem despercebidas pelo que chama de “unidade de inteligência financeira”.

As considerações jurídicas de Sergio Moro parecem ter dom de vidência. Em 2004, ele escreveu um artigo sobre a Operação Mãos Limpas na Itália que adianta ponto por ponto toda a estratégia usada na Operação Lava Jato. Agora, seu texto ganha ares de denúncia se cotejado com um artifício utilizado pelo senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ): o de fazer 48 depósitos de R$ 2 mil, num total de R$ 96 mil, em apenas cinco dias, no período de um mês (junho de 2017) – num indício claro de que se desejava ocultar a origem do dinheiro. Pode até ser que a gênese do recurso seja lícita. Mas desde que o Coaf identificou a movimentação atípica, o filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro consegue produzir mais dúvidas do que certezas. Assim, a crise que agora tem nome – e pior, sobrenome – só se agrava, como se um grande redemoinho se fechasse em torno dele, arrastando tudo o que há em volta. O temor não injustificável no governo é de que o “01” do presidente leve o Palácio do Planalto para o epicentro da crise. Nos últimos dias, surgiram suspeitas de ligações de Flávio Bolsonaro e do ex-assessor Fabrício Queiroz com milicianos do Rio de Janeiro suspeitos de estarem envolvidos na morte da vereadora Marielle Franco. Foi o bastante para que as encrencas viajassem 9 mil quilômetros e alcançassem Jair Bolsonaro em Davos, na Suíça.

Em entrevista na quarta-feira 23 à agência Bloomberg, o presidente não conseguir escapar do tema. “Se ele errou, e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele terá que pagar”. Algumas horas depois, Bolsonaro cancelou uma entrevista que daria à imprensa brasileira e internacional, provavelmente com receio de que ela repercutisse suas declarações. Mais adiante, vendo a proporção que o tema ganhou, recuou insinuando que o alvo das denúncias e investigações não é Flávio, mas ele próprio: “Não é justo usar o garoto para me atingir”.

Mesmo de maneira dissonante, Bolsonaro sente-se compelido a se posicionar, pois sabe que a crise iniciada com a informação do Coaf já passou de marolinha para algo próximo de um tsunami. Mas, se levada adiante, a estratégia de isolar Flávio Bolsonaro, dada a clara característica de clã político que marca sua carreira e a de seus filhos, não constituirá tarefa fácil. Os “garotos”,como ele diz, entraram na política na esteira do discurso do pai, seguem as mesmas linhas de pensamento, lançam mão da mesma prática, influenciam o governo e até indicam ministros. Um deles, Eduardo Bolsonaro, age quase como um chanceler. Já Carlos parece ditar o ritmo da comunicação do presidente na internet. Ademais, como dissociar totalmente o presidente da República do episódio das transações suspeitas de Flávio Bolsonaro e de seu ex-assessor se o próprio mandatário do País é um destinatário confesso de um dinheiro que saiu das contas de Queiroz?

CPI à vista

Por mais que oficialmente integrantes da base do governo neguem qualquer problema, há um consenso, tanto entre oposição e situação, que as suspeitas sobre Flávio reduzem a força da gestão Bolsonaro neste momento inicial, que deveria ser de lua de mel com o eleitor. A oposição, que parecia perdida e dividida, depois de ter sido atropelada nas urnas, enxerga agora a chance de se unir em nova bandeira. Segundo apurou ISTOÉ, quando o Congresso retornar do recesso em fevereiro, o caldo pode entornar de vez. Os partidos de oposição já trabalham com a hipótese de instalarem uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. Ou pelo menos instaurar um processo no Conselho de Ética do Senado contra o filho do presidente.

Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz são investigados por improbidade administrativa

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Quando irrompeu o escândalo, Flávio Bolsonaro até tentou adotar a estratégia de jogar para Fabrício Queiroz a responsabilidade pela origem do dinheiro que passeou em suas contas. Não colou. Em entrevista a uma emissora de TV, Queiroz se justificou: disse que os recursos eram fruto de negócios de compra e venda de automóveis. Alegando problemas de saúde, no entanto, o motorista até agora não se dirigiu ao Ministério Público para fornecer explicações – o que ele promete fazer tão logo se restabeleça (leia mais às págs. 32 e 33). A clara tentativa de transferir a culpa combinada à falta de firmeza nas explicações recrudesceu a crise. Que ganhou novos capítulos quando apareceram novas informações do Coaf mostrando que Flávio Bolsonaro fracionou R$ 96 mil em 48 depósitos em dinheiro realizados na boca do caixa eletrônico da agência do Banco do Brasil na Assembleia Legislativa do Rio. Novamente a emissoras de televisão, não para a Justiça, Flávio Bolsonaro alegou que o dinheiro era parte da venda de um apartamento para o ex-jogador de vôlei de praia Fábio Guerra. Fábio confirmou o negócio. Ele comprou um apartamento de Flávio nas Laranjeiras, por R$ 2,4 milhões, dando em troca um apartamento na Urca, uma sala comercial na Barra da Tijuca e mais R$ 600 mil em dinheiro como sinal. Deste montante, R$ 550 mil foram pagos em março de 2017, dos quais afirmou ter pago R$ 100 mil em dinheiro vivo. Até aí tudo bem. Os R$ 96 mil fracionados em R$ 2 mil cada podem mesmo ter vindo daí. O problema é que o valor foi pago em março, segundo Guerra, e Flávio só fez os depósitos em junho de 2017. Afinal, por que ficou com R$ 100 mil por três meses? E mesmo que o dinheiro seja oriundo desse negócio, por que Flávio não depositou tudo de uma só vez na agência, que estava aberta no momento em que ele fez os 48 depósitos em envelopes no caixa eletrônico?

Se as movimentações financeiras heterodoxas, por si só, já seriam suficientes para tisnar a imagem do primeiro filho de Bolsonaro, os indícios de ligações de Flávio com as milícias armadas do Rio de Janeiro adicionaram nitroglicerina pura ao ambiente já potencialmente explosivo. Durante a semana, soube-se que Flávio Bolsonaro empregou em seu gabinete a mãe e a mulher do ex-capitão de Operações Especiais da Polícia Militar Adriano Magalhães da Nóbrega. Suspeito de chefiar milícia, Adriano foi alvo de uma operação policial que aponta envolvimento de milicianos com um esquema de grilagem de terras. Ele está foragido. Outro miliciano apoiado por Flávio, o major Ronald Paulo Alves Pereira, foi preso na última terça-feira 22. A “Operação Os Intocáveis” investiga o “Escritório do Crime”, milícia que age na região da comunidade de Rio das Pedras, e da qual Adriano e Ronald fazem parte. Suspeita-se do envolvimento da facção no assassinato de Marielle Franco.

O elo de Flávio Bolsonaro com as milícias cariocas não se limita à contratação de familiares do miliciano foragido para trabalhar em seu gabinete. Como deputado estadual, ele chegou a prestar homenagem a Adriano da Nóbrega. No discurso, teceu loas ao poder paralelo armado: “Elas oferecem segurança e, desta forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas”. Mais uma vez, o filho do presidente defende-se atribuindo a culpa ao ex-assessor Fabrício Queiroz. Em nota, argumentou que as contratações eram de responsabilidade dele.

Coaf limitado

A verdade é que Flávio Bolsonaro – investigado junto com seu ex-motorista na área cível por improbidade administrativa, segundo o procurador-geral do Estado do Rio, Eduardo Gussem – dá demonstrações de tibieza, quando deveria ser mais convincente. E é isso que atemoriza o governo e o próprio presidente Jair Bolsonaro. O “01” do clã chegou a afirmar que seu sigilo bancário havia sido quebrado pelo MP-RJ sem autorização judicial, o que o procurador Gussem refuta. Diz que se alguém quebrou o sigilo não foi o MP, mas o próprio Coaf, a quem coube lhe remeter os dados da movimentação financeira atípica de Queiroz e do senador eleito. Talvez, por isso, na quarta-feira 23 o Banco Central tenha divulgado uma excrescência: que deseja excluir parentes de políticos da lista de monitoramento obrigatório das instituições financeiras, derrubando assim a exigência para que todas as transações bancárias acima de R$ 10 mil sejam notificadas ao Coaf. Uma norma de 2009 do BC, a quem o Coaf estava ligado até o final do ano passado, previa que pai, filhos e companheiros de políticos seriam alvo de uma vigilância mais rigorosa por parte dos bancos. Ao lançar, no início do governo Bolsonaro, e depois do mal estar provocado ao primogênito do presidente, uma proposta com clara intenção de proteger filhos de políticos, o governo corre o risco de contradizer a essência do discurso entoado durante a campanha: o da moralidade pública.