Apadrinhamento afetivo: esperança de crianças e adolescentes com pouca perspectiva de adoção

A adoção é uma ação de afeto que transcende o amor natural que existe entre quem possui vinculações biológicas, encontrando morada na simples ânsia por promover amplitude amorosa ao âmbito familiar. Entretanto, este ato louvável também possui um lado não tão belo que, normalmente, é ocultado: a seletividade ao se escolher quem se quer adotar, contemplando, majoritariamente, segundo a observação de dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), crianças de até cinco anos, sem irmãos, com pele clara e saúde perfeita.

Assim, cabe questionar: e para as demais crianças e adolescentes que vivem em situação de acolhimento institucional em casas de amparo e fogem a este perfil idealizado, o que sobra de perspectiva de “viver em família”?! A resposta é: o apadrinhamento afetivo, programa incluído pela Lei nº 13.509/2017 ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 19-B; programa este ainda pouco conhecido e que proporciona aos apadrinhados a experimentação de laços afetivos comunitários extrainstitucionais.

Conforme texto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “o apadrinhamento afetivo é um programa voltado para crianças e adolescentes que vivem em situação de acolhimento, ou em famílias acolhedoras, com o objetivo de promover vínculos afetivos seguros e duradouros entre eles e pessoas da comunidade que se dispõem a ser padrinhos e madrinhas. As crianças aptas a serem apadrinhadas têm, quase sempre, mais de dez anos de idade, possuem irmãos e, por vezes, são deficientes ou portadores de doenças crônicas – condições que resultam em chances remotas de adoção.”

Ou seja, apesar da possibilidade de ser apadrinhado valer para todos que vivem em situação de acolhimento, é mais comum que esta relação ocorra entre famílias desinteressadas em, efetivamente, adotar, e acolhidos que vivem por longos períodos em abrigos por não se enquadrarem nos perfis mais visados para a adoção.

Assim, as vinculações entre os padrinhos e os apadrinhados são focadas, basicamente, em proporcionar melhor qualidade de vida aos acolhidos a partir do convívio social na esfera familiar, oportunizando a eles a vivência em atividades em comunidade, mas sem envolver a transferência da guarda para quem busca apadrinhar, a mantendo com a instituição acolhedora.

Doação de amor

Apoiadora do programa de apadrinhamento afetivo, a coordenadora do Núcleo Especializado dos Direitos da Criança e do Adolescente (Nudeca) da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO), Larissa Pultrini, incentiva a procura por esta modalidade de “doação de amor”.

“Qualquer pessoa que tenha amor para doar, disposição para se dedicar a um apadrinhado, deve conhecer melhor este programa, visitar as entidades acolhedoras para conhecer os acolhidos que estão por lá e se candidatar à condição de padrinho ou madrinha. A partir daí, pode surgir uma relação muito bonita, um vínculo de afeto que vai proporcionar a experiência mais aproximada possível de uma realidade familiar saudável a quem carece muito disto”, explica a Defensora Pública.

Apadrinhamento x adoção

De acordo com o que preconiza o ECA, podem apadrinhar: pessoas maiores de 18 anos não inscritas nos cadastros de adoção, desde que cumpram os requisitos exigidos pelo programa de apadrinhamento. Caso se enquadrem nas exigências, os padrinhos e madrinhas, mesmo sem a responsabilidade da guarda, passam a acompanhar o desenvolvimento do apadrinhado na instituição de acolhimento, se tornando uma referência familiar para ele, realizando visitas constantes, passeios conjuntos, podendo levá-lo para casa em ocasiões especiais e até mesmo para viagens em férias.

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Para Larissa Pultrini, esta convivência familiar pode levar os padrinhos a se sentirem responsáveis únicos pelo desenvolvimento cognitivo, social, moral, educacional e até financeiro do acolhido, mas isto não pode ser confundido com uma adoção. “O apadrinhamento é um processo completamente diferente da adoção, tanto que para se candidatarem ao programa, as pessoas interessadas não podem estar cadastradas como pretendentes a adotar. Isto reduz a chance de acreditarem que apadrinhar alguém pode garantir alguma vantagem no processo de adoção tradicional, funcionando como um atalho ou uma forma de se escolher este mesmo alguém para adotar”, destaca.

Adoções tardias

Conforme a própria Defensora Pública, podem ocorrer exceções quando se trata do apadrinhamento de crianças ou adolescentes marginalizados nos processos de adoção.

“O objetivo do apadrinhamento é proporcionar aos acolhidos uma autonomia social, a chance de estabelecer novas trocas sociais a eles, que serão inseridos em novos contextos sociais fora da instituição onde vivem. Porém, algumas adoções tardias podem acontecer naturalmente a partir de um apadrinhamento, quando há uma sensibilização entre as partes, levando os mais velhos ou que tenham alguma deficiência a despertarem nos padrinhos a vontade sincera de aumentar o vínculo afetivo, buscando os adotar. Nestes casos de exceção, por envolver acolhidos que, normalmente, estão à margem da lista de procura por adoções, o processo, mesmo cumprindo todos os trâmites previstos pela legislação, pode ocorrer de maneira mais facilitada”, ressalta.

“Partilhar amor”

Existem aqueles que já passaram pelo processo de adoção, mas ainda sentiam que possuíam mais carinho a oferecer. Este é o caso do casal Genilda do Nascimento Silva Victor e Valci Ferreira Victor, de Palmas, que tem um filho biológico de 19 anos, uma filha adotiva de 14 (adotada aos quatro meses de idade), e, após se informar na internet sobre o apadrinhamento afetivo, apadrinhou, desde março deste ano, duas irmãs que têm 16 e 14 anos. Conforme explica Genilda, a vontade de partilhar amor foi a maior motivação para a criação deste vínculo com as meninas.

“Nós já acompanhamos o trabalho do Lar Batista há um tempo, fazendo visitações e colaborando sempre que podemos, pois acreditamos que cada um de nós pode fazer a diferença na vida das pessoas. Especialmente na vida de crianças e adolescentes em situação de amparo que, na maioria das vezes, só necessitam de carinho, atenção, de sentirem que existe alguém que, de fato, se preocupa com elas. E esta foi a nossa motivação; a vontade de partilhar amor. E durante um tempo em que ajudávamos uma criança de cinco anos do Lar com material escolar, nós fomos apresentados para estas meninas, que nos conquistaram com a maneira franca delas e a simpatia que possuem. Assim, como já pensávamos em apadrinhar alguém, decidimos que elas seriam as nossas afilhadas; e temos vivido ótimas trocas de experiências”, conta a dona de casa.

Para Genilda, o apoio de toda a família é um fator fundamental para que o apadrinhamento atinja a proposta que tem: a de proporcionar experiências familiares positivas a quem sempre foi carente disto. “O meu filho mais velho, que não mora mais com a gente, foi receptivo a este apadrinhamento; a minha filha mais nova tem se dado muito bem com as meninas; e os meus pais são superatenciosos com elas. Então, desde que as apadrinhamos, nós sempre planejamos alguma atividade em família; e recentemente tivemos uma viagem a Natal [Rio Grande do Norte], e elas, que não conheciam o mar, ficaram encantadas. Estas convivências em família têm proporcionado experiências maravilhosas para elas e presenciar isto tem nos feito muito, muito feliz”, enaltece.

No Tocantins

Dados recentes do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA) fornecidos pelo CNJ apontam que, atualmente, existem 78 crianças e 22 adolescentes acolhidos no Tocantins. Lembrando que, para o ECA, criança é a pessoa com idade inferior a 12 anos, enquanto adolescente é aquela entre 12 e 18 anos.

Ainda segundo o CNJ, não existe, no sistema atual de registro do CNA, o número de apadrinhamentos financeiros e afetivos, assim como a contagem da quantidade de apadrinhamentos que catalisaram processos de adoções tardias.

De 2014 até os dias atuais, no Tocantins, também conforme o CNJ, 21 adoções foram realizadas. Deste total, apenas crianças foram adotadas, sendo 17 dos casos envolvendo acolhidos com a idade entre zero e cinco anos, e quatro entre seis e 11 anos.

Destas 21 adoções, 15 foram de crianças de pele parda, cinco branca e somente uma negra. Em 14 dos casos, as crianças não possuíam irmãos e sete não eram filhos únicos. Por fim, 19 das crianças adotadas não apresentaram doenças detectadas no momento do cadastro, enquanto duas tiveram algum tipo de doença detectada.

Como apadrinhar?

Aqueles que tiverem o interesse em se candidatar a uma vaga de apadrinhamento devem procurar, diretamente, as entidades de acolhimento da cidade onde vivem. Eles serão cadastrados e passarão por uma série de avaliações que vão determinar a aptidão, ou não, para apadrinhar uma criança ou um adolescente.

Após a aprovação dos candidatos, as normativas sobre como se darão as visitas, os passeios e todas as trocas de experiências familiares dependem da aplicabilidade do programa de apadrinhamento afetivo em cada instituição de amparo.