Os contemporâneos de Leonardo Da Vinci (1452-1519) contam que o artista, engenheiro e sábio de muitas disciplinas costumava fazer um gesto característico quando conversava com os nobres, exibia-se em um palco ou se dirigia a aprendizes no ateliê: levantava a mão e apontava com o dedo indicador para o alto, em direção de algum objeto ou mesmo de um fenômeno natural. Em vida, o Leonardo di Ser Piero da Vinci — nascido em Anchiano, lugarejo vizinho a Vinci, então república de Florença, filho ilegítimo do notário Piero Fruosino — despertava admiração pela beleza, força física, maneiras refinadas, raciocínio crítico e a vontade de impressionar e até chocar as pessoas a sua volta.
Trajado com um manto cor-de-rosa curto, quando a moda era a veste longa, bastos cabelos encaracolados e barba que lhe caía pela cintura, leonardo se imbuía de uma consciência teatral. Representava o papel do personagem que, com curiosidade insaciável, perseguia a perfeição: a imagem do que se convencionou chamar de homem renascentista, aquele que se liberta das superstições medievais e usa o poder de observação da natureza para expressar o resultado do conhecimento em esboços, diagramas, cálculos e, por fim, obras de arte e engenharia.
A síntese do “método de Da Vinci”, como descreveu o poeta Paul Valéry, uma modalidade de alto saber não-verbal, pode ser encontrada na imagem da mão humana com o dedo apontando para um alvo determinado ou não. Além de repetir o gesto no dia a dia, ele o fixou em pinturas: São Tomé inica o céu em “A Última Ceia”, o anjo de ‘‘Anunciação” aponta Maria para o espectador e São João Batista ergue o dedo com um despudor que ainda faz corar muitos críticos. seu modelo teria sido o jovem aluno Salai (“Diabinho”), um delinquente com quem viveu por longo tempo.
Provocador, Leonardo parecia querer mostrar o caminho da redenção ou a trilha da decifração do universo. “Para Leonardo, Mistério era uma sombra, um sorriso e um dedo apontado para a escuridão”, disse um de seus biógrafos mais eminentes, o inglês Kenneth Clark (1903-1983).
No cotidiano do florentino, o enigmático se misturava à pesquisa. Nas 18 mil folhas dos manuscritos que sobreviveram e nos esboços e diagramas distribuídos caoticamente em códices e cadernos, ele projetou instrumentos musicais, armas, ferramentas e veículos que só viriam a ser realizados nos séculos vindouros. Esmerou-se em se tornar mestre em geometria, engenharia hidráulica, matemática, geologia, balística, acústica, botânica, física, anatomia — ao todo, 13 disciplinas como são compreendidas no século XXI.
Se há algo que pode rivalizar com LEONARDO Da Vinci é o computador, uma metáfora que dá ideia do que ele fez
Mas, na realidade, somente a partir do século XIX é que Leonardo foi reconhecido como inventor visionário e modelo científico. Muitos cientistas tentaram minimazar sua contribuição para áreas como a engenharia. O influente químico francês Marcellin Berthelot afirmou, em 1902, que os projetos de Leonardo eram comuns a outros investigadores renascentistas. Nada mais, no entanto, abalou a reputação do gênio — e ele atravessou o milênio mais cultuado do que nunca. Para o crítico Teixeira Coelho, professor da USP, ele prefigurou o sonho atual da universidade de unificar o conhecimento. “Se há algo que pode rivalizar com Leonardo da Vinci é o computador, uma metáfora que dá ideia do que ele fez”, acrescentou.
Seus experimentos científicos eram desconhecidos de contemporâneos, exceto por episódios esparsos e excêntricos. Em 1517, quando trabalhava na França para o rei Francisco I, respondeu ao cardeal de Aragão como obtinha desenhos tão fiéis de seres humanos: “Dissequei cadáveres de mais de 30 homens e mulheres de todas as idades”. O religioso ficou escandalizado. Esse tipo de atitude sarcástica forneceu ao artista uma aura diabólica. Na verdade, devotou-se também à nigromancia, prática que envolvia magia negra e profecia. Inspirados nas ciências ocultas, no fim da vida, Leonardo desenhou em carvão cenas catastróficas que, para alguns, ainda podem suceder à humanidade.
O fato é que ele ficou famoso ainda durante sua existência por causa da excelência artística. A realização final do conjunto de suas aquisições científicas visava a resultar em pinturas, afrescos, esculturas e até peças de teatro e ópera. Um exemplo desse procedimento peculiar é o desenho “Homem Vitruviano” (c. 1490). Leonardo concentrou ali todos os conhecimentos que possuía. O objetivo era traduzir em desenho a descrição da proporção perfeita do corpo humano realizada pelo arquiteto romano Vitrúvio (século I a.C.) para aplicá-la em edificações. Vitrúvio achava que o corpo perfeito compreendia seis pés de altura, mas não explicou isso em um diagrama. Coube a Leonardo fazê-lo. Para a tarefa, usou desenho tridimensional, matemática e geometria. Mas concluiu que Vitrúvio estava errado. Segundo ele, a proporção correta seria de sete pés. Ele o representou então em duas posições simultâneas, inserido na quadratura do círculo. Dizem os especialistas que o modelo do “Homem Vitruviano” era o próprio Leonardo nu, aos 38 anos. Ciência ou arte? Como afirma seu recente biógrafo, o americano Walter Isaacson: “Leonardo não distinguia arte de ciência”.
O paradoxo em torno de Leonardo não repousa na dicotomia entre criação artística e experimentação, mas no fato de que suas realizações foram parciais. Apesar de adotar a divisa “Hostinato rigore” (rigor obstinado), foi um profissional dispersivo que deixou diversos projetos inacabados. Além de insubordinado, apreciava organizar espetáculos e festas particulares com seus aprendizes.
Em de seus traços que desagradava à nobreza era recusar encomendas de retratos. Mesmo assim, trabalhou para mecenas. O florentino César Bórgia e o milanês Ludovico Sforza tinham inclinações distintas e Leonardo tratou de se adaptar aos desejos deles. Bórgia reuniu um círculo de intelectuais neoplatônicos e cultuava a forma ideal. Sforza planejava anexar territórios ao Ducado de Milão e, por isso, precisava de máquinas de guerra. Leonardo produziu pinturas para Bórgia, e projetou canhões e um gigantesco cavalo de bronze para Sforza. Também pintou o afresco “A Última Ceia”, encomendado por Sforza para o refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, do qual era patrono. Para realizar a obra, entre 1495 e 1498, o pintor estudou a arte do painel, que não conhecia. As soluções que encontrou foram insuficientes para manter a obra de pé, por causa dos pigmentos que não aderiam à parede. Mesmo assim, “A Última Ceia” se tornou sua segunda obra mais célebre. Perde apenas para a pintura mais famosa do mundo, a “Mona Lisa” (c. 1503), que elaborou em seu regresso a Florença, e hoje atrai 3,5 milhões de admiradores anualmente ao Museu do Louvre.
A indecifrável
A mística em torno do retrato da moça florentina sorridente (daí o apelido “La Gioconda”, a sorridente) rendeu especulações e livros. A modelo teria sido Lisa Gherardini, mulher do comerciante Francesco del Giocondo. Há quem aposte na nobre Isabella d’Este. Historiadores confiáveis afirmam tratar-se da favorita de Giuliano de Médici, Pacifica Brandano. Leonardo também usou-a para posar para o desenho “Mona Lisa nua”, supostamente a mando de Médici. O nobre libertino pediu que o pintor escondesse os dois retratos porque não queria que a mulher os descobrisse.
Ocultar representações de Pacifica teria sido a razão de Leonardo levá-las consigo quando se mudou em 1516 para Amboise, a convite de Francisco I. O monarca francês lhe ofereceu o solar de Clos Lucé, próximo ao castelo real, onde o artista passou a viver com o pupilo e herdeiro, o jovem Francesco Melzi. Na França, poderia se dedicar à meditação. O rei achava que Leonardo era um grande filósofo que perdeu tempo em pintar quadros. Quando o pintor morreu, em 2 de maio de 1519, aos 67 anos, “La Gioconda” estava pendurada a uma parede de seus aposentos.
A razão mais plausível para Leonardo tê-la conservado foi o apreço pela obra, que realizava como nenhuma outra aquilo que considerava sua contribuição maior: o efeito do “sfumato”. Segundo o historiador Giulio Carlo Argan, Leonardo foi o primeiro a ter observado que a atmosfera não é transparente e idealizada nas telas dos primeiros mestres renascentistas, como o platônico Botticelli. O ambiente possui densidade e cor, porque isso pertence aos fenômenos naturais. Estes elementos eram experimentados e testados no processo de elaboração artística. “Leonardo representa a figura com a atmosfera que a envolve”. O retrato da Gioconda se apresenta inseparável da paisagem quase abstrata do fundo e do véu de sombria transparência que envolve a figura humana com a luz do final do crepúsculo, tão apreciada pelo pintor.” Eis aí a lição maior de técnica pictórica ministrada pelo Alquimista do Chiaroscuro, como o apelidou o historiador Serge Bramly.