Entenda como funciona o cartão corporativo do governo federal usado por Bolsonaro

Criado em 2001, esse modo de pagar despesas passou por mudanças ao longo dos anos

Os gastos do cartão corporativo do ex-presidente Jair Bolsonaro tem chamado atenção desde que foram divulgados na última quarta-feira (11/1). Os dados foram disponibilizados pela Secretaria-Geral da Presidência da República. Dentre as despesas estão: R$ 8,6 mil em sorvetes, R$ 10,5 milhões em hotéis, R$ 362 mil em uma única padaria, dentre outros.

As informações foram solicitadas pela Fiquem Sabendo, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 18 de dezembro de 2022.

JOTA preparou uma série de perguntas sobre o tema, com as principais dúvidas, e Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil, explicou como, afinal, é o funcionamento do cartão corporativo do governo federal e que tipos de gastos podem ser pagos com ele.

 

Desde quando existe o cartão corporativo do governo federal?

Desde 2001, por iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto 3892). Em 2005, no primeiro governo Lula, passou a se chamar “Cartão de Pagamento do Governo Federal” (Decreto 5355).

Como funciona o cartão corporativo?

Em 2008, com o Decreto 6370, ele passou a ser o meio obrigatório para a efetivação dos gastos do governo federal com os chamados suprimentos de fundos. Tratam-se de despesas eventuais e excepcionais que não dá para serem feitas pelos processos normais (licitações, transferências bancárias etc.) e despesas que precisam ser sigilosas (por exemplo, as realizadas por agentes durante a apuração de irregularidades). Há prazo certo para utilização e comprovação dos gastos.

A União firma um contrato com uma empresa administradora de cartão de crédito para operacionalizar o cartão corporativo de acordo com algumas condições (a empresa não pode cobrar do governo taxas de adesão e manutenção, anuidades e quaisquer outras despesas, segundo a Portaria 41/2005 do Ministério do Planejamento). Cada unidade do governo pode aderir a esse contrato.

O ordenador de despesa (gestor responsável por administrar o gasto) de cada órgão/departamento do governo fornece cartão corporativo aos servidores que precisem realizar esse tipo de gasto (suprimento de fundos) em suas atividades.

Que servidores podem ter cartão corporativo? 

O cartão corporativo é fornecido apenas a alguns servidores públicos de cada órgão, pelos ordenadores de despesa (gestores responsáveis por administrar o gasto naquele órgão ou departamento). A concessão do cartão se dá mediante apresentação de justificativas e comprovação da necessidade de um servidor usá-lo.

Alguns servidores não podem ter cartão corporativo:

  • o próprio ordenador de despesas;
  • o servidor que for responsável por mais de um suprimento de fundos (verbas para uso excepcional) que esteja sendo gasto ou em fase de prestação de contas;
  • o servidor que for responsável pelo material que será comprado com o cartão (um funcionário do almoxarifado não pode ter um cartão corporativo que permita a ele comprar material de escritório, por exemplo);
  • o servidor que estiver devendo prestação de contas de outro cartão ou tiver cometido irregularidades no uso de algum cartão.

Existe diferença entre os cartões corporativos do presidente da República, ministros e demais servidores?

Sim. O art. 47 do Decreto 93.872/1986 diz que gastos via cartão corporativo “para atender peculiaridades dos órgãos essenciais da Presidência da República” obedecem a um regime especial. Não há, entretanto, uma definição clara do que seriam essas “peculiaridades”. E o estabelecimento do próprio regime especial só é mencionado claramente em uma portaria de março de 2022, que tampouco é clara sobre os termos e limites aplicáveis.

O mesmo artigo estabelece regime especial também para gastos via cartão corporativo “para atender peculiaridades de órgãos essenciais” da Vice-Presidência, do Ministério da Economia, da Polícia Federal, de militares e de inteligência.

E estabelece regime especial para gastos feitos por certas posições e funções:

  • atendimento à saúde indígena pelo Ministério da Saúde;
  • adidos agrícolas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no exterior;
  • repartições do Ministério das Relações Exteriores no exterior;
  • atividade de acordos de leniência, de inteligência, de fiscalização, de investigação e de operações especiais realizadas pela Secretaria de Combate à Corrupção da Controladoria-Geral da União que demandem despesas consideradas de caráter sigiloso

Segundo o site G1, Bolsonaro usou o cartão corporativo para pagar até mesmo a manutenção da embarcação. Que tipo de gastos, afinal, podem ser pagos com cartão corporativo? 

De acordo com o Decreto 5355/2005, os cartões corporativos só podem ser usados para:

  • despesas enquadradas como suprimento de fundos:
  • despesas eventuais, inclusive em viagem e com serviços especiais, que exijam pronto pagamento em espécie
  • despesas que devem ser feitas em caráter sigiloso
  • despesas de pequeno vulto (com valor de até R$ 800, no caso de compras e serviços, ou de R$ 1.500, no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, conforme portaria 95/2002 do Ministério da Fazenda)
  • pagamento a empresas prestadoras de serviço de cotação de preços, reservas e emissão de passagens;
  • pagamento de diária de viagem a servidor (despesas extraordinárias com hospedagem, alimentação e locomoção urbana, adicional para deslocamento de e para local de embarque e desembarque).

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Mas, como dito na pergunta anterior, há um “regime especial” para gastos que atendam a “peculiaridades” da presidência da República e uma grande margem de interpretação sobre o que se pode encaixar nessas “peculiaridades”.

Quais os limites de gastos dos cartões corporativos no total e por tipo de despesa? 

De acordo com a Portaria 95/2002 do Ministério da Fazenda, os limites totais das despesas que podem ser feitas com o cartão corporativo são:

  • R$ 15 mil para gastos relacionados à execução de obras e serviços de engenharia (o correspondente a 10% do valor de referência da Lei de Licitações para dispensa de licitação na modalidade convite desse tipo de compra pública);
  • R$ 8 mil para gastos relacionados a compras e outros serviços (o correspondente a 10% do valor de referência da Lei de Licitações  para dispensa de licitação na modalidade convite desse tipo de compra pública).

Dentro disso, há limites máximos para cada tipo de despesa individualmente:

  • R$ 800 para despesas de pequeno vulto, no caso de compras e outros serviços;
  • R$ 1.500 para despesas de pequeno vulto no caso de execução de obras e serviços de engenharia.

Os limites podem ser aumentados por decisão de ministro de Estado ou autoridade equivalente, mediante justificativa.

De acordo com a Portaria 41/2005 do Ministério do Planejamento, o ordenador de despesa de cada órgão/unidade é que dirá para a operadora do cartão o limite de uso total do órgão,  o limite a ser concedido para cada portador de cartão e que tipo de despesa cada um está autorizado a realizar.

É preciso apresentar nota fiscal para todos os tipos de gastos?

Não necessariamente nota fiscal, mas deve ser apresentado, para todos os tipos de gastos, um comprovante da despesa que contenha identificação do fornecedor e do órgão ao qual o usuário do cartão está vinculado, data da emissão e detalhamento do item comprado ou serviço prestado, e as quantidades. São aceitos também recibos comuns (caso o fornecedor não tenha inscrição) ou Recibo de Pagamento de Autônomo, por exemplo.

Orlando Silva, ex-ministro dos Esportes, ficou desgastado por conta do uso do cartão corporativo para a compra de uma tapioca. Que tipo de mudanças nas regras sobre o uso do cartão houve ao longo do tempo?

Em 2001, era permitido fazer saques com o cartão corporativo para custear as despesas. Em 2005, o Decreto 5535 e a Portaria 41/2005 do Ministério do Planejamento proibiram o uso do saque do cartão corporativo para pagar despesas com cotação, reserva e emissão de passagens aéreas.

Em 2008, após o caso de Orlando Silva, limitou-se ainda mais e de forma mais expressa o saque por meio do cartão, com o Decreto 6370. Só pode ser feito:

  • naqueles casos de despesas “para atender a peculiaridades” da Presidência, Vice-Presidência e alguns órgãos e funções;
  • No caso da Presidência, a Portaria 778/2008 da Casa Civil estabeleceu que saques com cartão corporativo para gastos da Presidência só poderiam ser realizados em lugares ou estabelecimentos que não tivessem máquina de cartão. Vigente até pelo menos outubro de 2020, segundo esta portaria;
  • em situações específicas de um órgão ou entidade, dentro do limite de até 30% do total da despesa anual do órgão ou entidade com esse tipo de gasto (suprimento de fundos);
  • em situações específicas de uma agência reguladora, com o mesmo limite acima.

Procede a informação de que os gastos com o cartão corporativo de Bolsonaro estava sob sigilo de 100 anos?

Não. Os gastos estavam classificados como “reservados” conforme permite o art. 24, §2º da Lei de Acesso à Informação: “As informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”.

Como o mandato de Bolsonaro acabou, o sigilo sobre os gastos com o cartão corporativo presidencial em sua gestão caducou.

Que tipo de despesas podem ser sigilosas e de até quanto tempo pode ser o sigilo?

Despesas:

  • cuja divulgação possa comprometer a segurança do do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as). Prazo máximo: até o final do último mandato (ou seja, 4 anos ou 8, se a pessoa for reeleita);
  • qualquer outra cuja divulgação, segundo o órgão que realizou a despesa, possa “comprometer a segurança da sociedade e do estado”. Entram aqui as despesas da Polícia Federal, de órgãos de inteligência ou do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo. Nesse caso, os prazos de sigilo são os determinados pela LAI: 5 anos (se a informação for classificada como “Reservada”), 15 anos (se for classificada como “Secreta”), 50 anos (se for classificada como “Ultrassecreta”). O prazo de sigilo pode ser definido também por um acontecimento específico (até o final de uma determinada investigação, por exemplo).

Foi divulgado que, com a correção monetária, Lula e Dilma Rousseff gastaram mais em seus mandatos que Bolsonaro. Nas redes sociais, especularam que era porque, na época de Lula e Dilma, os gastos diziam respeito também aos ministérios, enquanto que, no caso de Bolsonaro, dizia respeito somente à Presidência da República. Isso procede?

Não. A planilha divulgada, cujos dados mostram essa diferença nos gastos, contém apenas dados referentes a órgãos da Presidência da República. É possível verificar isso por meio do código de classificação de cada linha de despesa, o chamado CIDIC. Os primeiros dígitos de cada código identificam a unidade do governo que produziu a informação, e todos os que aparecem na planilha são de órgãos da Presidência.